A vida de um professor negro, vítima de violência policial, narrada por um filho que, ainda em luto, busca compreender suas origens e processar a perda do pai
Resenha do livro: O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, publicado pela editora Companhia das Letras em 2020
A narrativa de “O Avesso da Pele” traz à tona um tema profundamente atual e doloroso: a violência policial direcionada a homens negros. Essas histórias não são novas; estão presentes nas notícias cotidianas e nas vidas de muitos. O livro relata a experiência de Pedro, um filho que, ao lidar com a morte de seu pai Henrique durante uma abordagem policial, também revisita as memórias familiares e a sua própria identidade.
A violência policial no Brasil se reflete em diversos fatores, incluindo a falta de treinamento dos agentes de segurança e a perpetuação de estereótipos raciais. O autor capta a essência desse absurdo, que se torna uma rotina para as comunidades mais marginalizadas, especialmente para pessoas negras. O luto de Pedro se transforma em um caminho para entender não apenas a perda de seu pai, mas também para explorar a cultura e os laços familiares que moldaram sua vida.
A obra é mais do que uma história sobre tragédias; é um retrato das memórias que conectam gerações. Pedro recuerda momentos marcantes da vida de seu pai e, por consequência, dos desafios enfrentados por sua família na sociedade brasileira. Há uma reflexão intensa sobre como a cor da pele influencia as experiências e a percepção de vida desses personagens.
Em uma passagem marcante, Pedro se dá conta de sua negritude e como isso altera sua visão de mundo. Essa consciência tardia muitas vezes leva a um estado de alerta constante, onde as regras de sobrevivência se tornam uma parte intrínseca da vida. O autor retrata as microviolências do dia a dia, que vão desde olhares desconfiados até comentários disfarçados de brincadeira.
A luta de Pedro também é uma luta coletiva. Ao longo da trama, ele descobre a história de outros indivíduos que também enfrentaram questões semelhantes. Essas narrativas cruzadas oferecem um mosaico de vivências que ilustram como a sociedade racista condiciona a vida de muitos. Mesmo quando as pessoas conseguem superar barreiras sociais e educacionais, elas continuam a enfrentar um ambiente hostil que constantemente questiona sua presença e suas conquistas, gerando um estresse constante.
Outra camada da história explora a dinâmica familiar de Pedro. Os pais dele cresceram em ambientes conturbados, onde a segurança emocional era escassa. Essa falta de suporte ressoou em suas vidas adultas, afetando seus relacionamentos e a maneira como lidaram com conflitos.
As dores do passado se transformam em comportamentos na vida adulta. O amor, em vários momentos, se mostra como um elo fragilizado, e cada um busca, de alguma forma, uma estabilidade que parecia inexistente. A busca por afeto, mesmo que muitas vezes dolorosa, se torna um reflexo da maneira como esses indivíduos entrelaçam suas histórias.
A profissão de Henrique, um professor em uma escola pública, é igualmente debatida. O ambiente educacional apresenta barreiras significativas. O autor destaca que, para professores como ele, garantir uma aula produtiva é um verdadeiro desafio, demandando uma criatividade constante e dedicação em meio à falta de recursos e ao desinteresse de alguns alunos.
Apesar das dificuldades, Henrique mantém a fé na transformação pelo conhecimento. Seus esforços são marcados por esperanças e frustrações, revelando a precariedade do sistema educacional e o quanto estes fatores impactam as gerações futuras. A pressão constante em ambientes de classe baixa é um retrato doloroso de uma estrutura que falha em acolher e educar adequadamente.
A obra de Tenório não apenas narra a vida de um homem, mas também serve como um chamado à empatia. Através da ficção, ele propicia uma conexão profunda entre leitor e personagem, permitindo que a experiência de Pedro ressoe em outras pessoas. A narrativa traz à luz questões de identidade, pertencimento e a luta pela dignidade humana, explorando como essas experiências moldam a percepção do mundo.
Os leitores são convidados a refletir sobre experiências que muitas vezes não estão em sua própria realidade, ampliando assim a compreensão sobre o que significa viver em uma sociedade que marginaliza indivíduos com base na cor da pele. Com uma escrita visceral e honesta, Tenório apresenta uma reinterpretação da dor e anseios de uma geração, convidando todos a contemplarem a força de suas histórias e as lutas que muitas vezes permanecem invisíveis.
O caminho de descoberta e autocompreensão de Pedro torna-se um reflexo das experiências de muitos, que enfrentam o preconceito e buscam, através da narrativa, a redescoberta de suas identidades e a validação de suas histórias. O que Tenório proporciona, além de um relato emocionante, é uma possibilidade de diálogo sobre temas que ainda precisam ser amplamente discutidos.
O Avesso da Pele é uma obra que ressoa em tempos difíceis e ilumina a necessidade de um olhar mais atento e justo sobre a vida de outros. Cada página nos força a confrontar a realidade e a expressão das dores que não são apenas de personagens fictícios, mas que se entrelaçam com a história de muitos brasileiros.